31 de outubro – Drummond

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Haverá poeta mais querido do que Carlos Drummond de Andrade, nascido a 31 de outubro de 1902, em Itabira, nas Minas Gerais? Talvez sim, mas eu acho que não. A minha comemoração de Halloween, todos os anos, é ler alguma coisa de Drummond neste dia. Não sou de poesia, sou da prosa. Mas tenho anotado na agenda a data de nascimento de Drummond e não passo um aniversário seu sem que leia um poema de sua lavra – para um poeta mineiro, nascido junto a uma montanha de ferro, o uso do termo ‘lavra’ como significado do seu trabalho é exatamente exato.

“Vai, Carlos! ser gauche na vida.”

“Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.”

“Enquanto isso o poeta federal / tira ouro do nariz.”

“No meio do caminho tinha uma pedra.”

“Eta vida besta, meu Deus.”

“João amava Teresa que amava Raimundo.”

“A vida parou / ou foi o automóvel?”

“Depressa, que o amor / não pode esperar.”

“Perdi o bonde e a esperança.”

“Oh! sejamos pornográficos / (docemente pornográficos).”

“Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo.”

“Itabira é apenas uma fotografia na parede / mas como dói.”

“Os inocentes do Leblon / não viram o navio entrar.”

“Não serei o poeta de um mundo caduco.”

Aprendi a gostar de Drummond com minha mãe. E nestes dias em que minha mãe vive o fim da vida eu retorno com mais intensidade ao que ela me presenteou. Parei de usar o relógio que ela me deu, porém.

A poesia de Drummond é “expressão de uma alma muito pessoal” (Otto Maria Carpeaux) que permite a “aguda percepção de de um intervalo entre as convenções e a realidade: aquele hiato entre o parecer e o ser dos homens e dos fatos que acaba virando matéria privilegiada do humor, traço constante” (Alfredo Bosi) na sua poesia.

Se o brasileiro é cordial, seu poeta querido é aquele que lhe fala ao coração. É preciso estudo para gostar de João Cabral, para gostar de Drummond basta o aprendizado oral.

De tantos versos lindos, entre tantos poemas lindos, escolho um que me parece trazer inteiro o sentimento único do escritor quando ele encontra a palavra. Este momento é de um sentimento pleno, no entanto, nem sempre é realizado; é como o momento em que o falante diz ‘está na ponta da língua’- está lá, tudo está dito, embora nada tenha sido falado. Da mesma forma, quando o poeta percebe o verso, ele se transborda mesmo que não chegue a ser escrito.

POESIA

Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda a minha vida inteira.

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Os versos deste texto foram recolhidos de Sentimento do Mundo (Record, 1999), edição que agrupa os três primeiros livros de Drummond (Alguma Poesia, de 1930, Brejo das Almas, de 1934, e Sentimento do Mundo, de 1940). Poderia juntar a estes diversos outros, de outras fases, porque o mundo é vasto mas eu não me chamo Raimundo.

A crítica de Carpeaux está no livro de Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira (Cultrix, 1994).

Convite: leia um poema de Drummond hoje e me mande um comentário dizendo qual leu. Aproveite para não pensar em política por cinco minutos.

6 comentários em “31 de outubro – Drummond”

  1. VERDADE

    A porta da verdade estava aberta,
    mas só deixava passar
    meia pessoa de cada vez.

    Assim não era possível atingir toda a verdade,
    porque a meia pessoa que entrava
    só trazia o perfil de meia verdade.

    E sua segunda metade
    voltava igualmente com meio perfil.
    E os dois meios perfis não coincidiam.

    Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
    Chegaram a um lugar luminoso
    onde a verdade esplendia seus fogos.
    Era dividida em duas metades,
    diferentes uma da outra.

    Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
    As duas eram totalmente belas.
    Mas carecia optar. Cada um optou conforme
    seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

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  2. Eu desconfiava:
    todas as histórias em quadrinho são iguais.
    Todos os filmes norte-americanos são iguais.
    Todos os filmes de todos os países são iguais.
    Todos os best-sellers são iguais.
    Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.
    Todas as mulheres que andam na moda
    são iguais.
    Todos os partidos políticos
    são iguais.
    Todas as experiências de sexo
    são iguais.
    Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
    e todos, todos
    os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
    Todas as guerras do mundo são iguais.
    Todas as fomes são iguais.
    Todos os amores, iguais, iguais, iguais.
    Iguais todos os rompimentos.
    A morte é igualíssima.
    Todas as criações da natureza são iguais.
    Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
    Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem,
    bicho ou coisa.

    Ninguém é igual a ninguém.
    Todo ser humano é um estranho
    ímpar.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Literatura comentada. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 144-5.

    5 minutos de liberdade!
    ótimo texto e.. VIVA A MAMÃE!
    bj

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  3. Muito obrigado pelo texto!
    Aqui vai um clássico :

    José

    E agora, José?
    A festa acabou,
    a luz apagou,
    o povo sumiu,
    a noite esfriou,
    e agora, José?
    e agora, você?
    você que é sem nome,
    que zomba dos outros,
    você que faz versos,
    que ama, protesta?
    e agora, José?

    Está sem mulher,
    está sem discurso,
    está sem carinho,
    já não pode beber,
    já não pode fumar,
    cuspir já não pode,
    a noite esfriou,
    o dia não veio,
    o bonde não veio,
    o riso não veio,
    não veio a utopia
    e tudo acabou
    e tudo fugiu
    e tudo mofou,
    e agora, José?

    E agora, José?
    Sua doce palavra,
    seu instante de febre,
    sua gula e jejum,
    sua biblioteca,
    sua lavra de ouro,
    seu terno de vidro,
    sua incoerência,
    seu ódio — e agora?

    Com a chave na mão
    quer abrir a porta,
    não existe porta;
    quer morrer no mar,
    mas o mar secou;
    quer ir para Minas,
    Minas não há mais.
    José, e agora?

    Se você gritasse,
    se você gemesse,
    se você tocasse
    a valsa vienense,
    se você dormisse,
    se você cansasse,
    se você morresse…
    Mas você não morre,
    você é duro, José!

    Sozinho no escuro
    qual bicho-do-mato,
    sem teogonia,
    sem parede nua
    para se encostar,
    sem cavalo preto
    que fuja a galope,
    você marcha, José!
    José, para onde?

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