Como querer Caetanear

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Será que nunca faremos senão confirmar

A incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos?

 

Toda essa gente se engana

Ou então finge que não vê que

O rio deságua no mar

 

Já tanta coisa aprendi

Mas o que é mais meu cantar

É isso que eu canto aqui

Leia na minha camisa

Ó minha bandeira

Solta na amplidão

Eu nunca te disse

Mas agora saiba

Nunca acaba, nunca

 

Eu quero seguir vivendo

A vida que é meu bem, meu mal

Sou tímido e espalhafatoso

Sem mágoas estamos aí

Nada no bolso ou nas mãos

Sem livros e sem fuzil

No coração do Brasil

Afasto o que não conheço

É preciso estar atento e forte

Não temos tempo de temer a morte

 

Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem

O meu projeto Brasil

Perigas perder você

Eu, você, depois

Quarta-feira de cinzas no país

O tempo parou pra eu olhar aquela barriga

No pulso esquerdo bang-bang

Em suas veias corre muito pouco sangue

Pausa na fração de semifusa

Pode conter tão grande tristeza

E as notas dissonantes se integraram

Ao som dos imbecis

Ah, esse cara tem me consumido

Eu não consigo entender sua lógica

Que é do outro lado, do lado de lá

Do lado que é lá do lado de lá:

Lobo do lobo do lobo do homem.

 

Me larga, não enche

Me encara de frente

Quando eu chego em casa nada me consola

Eu me sento, eu fumo, eu como, eu não aguento

Solidão apavora

Tudo demorando em ser tão ruim

 

Vivo a força rara desta dor

Lágrimas encharcam a minha cara

Gotas de leite bom na minha cara

Quando a noite a lua mansa

E a gente dança

Meu som te cega, careta, quem é você?

 

Cabeça a prumo, segue o rumo e nunca, nunca mais

O homem velho é o rei dos animais

Canta e pode fazer cantar

O meu louco querer

Sem querer ser merecer ser um camaleão

 

O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece

 

Minha voz soa exatamente

De onde no corpo da alma de uma pessoa

Se produz a palavra eu

Quando você me ouvir cantar

Mandar os malditos embora

Venha, não creia, eu não corro perigo

Tudo mudou não me iludo e contudo

Eu digo não

Berro pelo aterro, pelo desterro

Eu digo não ao não

Berro por seu berro, pelo seu erro

E eu digo

Eu acabo de perder a cabeça

E onde queres bandido, sou herói

E eu corri pro violão, num lamento, e a manhã nasceu azul

 

Os átomos todos dançam, madruga

Reluz neblina

Branca branca branca branca

A minha nossa voz atua sendo silêncio

Transborda pelas portas e pelas janelas

Silencia os automóveis e as motocicletas

Se espalha no campo derrubando as cercas

De onde o oculto do mistério se escondeu

 

Compositor dos destinos

Por seres tão inventivo

E pareceres contínuo

Faço no tempo soar minha sílaba

 

Será que apenas os hermetismos pascoais

Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão dessas trevas

E nada mais?

_______________________________

Versos de Caetano Veloso retirados do livro Letra Só, organização Eucanaã Ferraz, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

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