Na semana passada a Livraria Cultura pediu e obteve uma recuperação judicial. Segundo a imprensa, a empresa deve 285 milhões de reais e a última informação de faturamento é de 2016: 360 milhões de reais. Se nos últimos dois anos a empresa faturou exatamente a mesma coisa, a dívida é 80% do faturamento. Não sou especialista em finanças corporativas, mas me parece muita areia para esse caminhão.
É curiosa a situação da Cultura. Quando o marketing fala em ‘experiência de compra’, entende-se que o cliente compra não apenas o produto, mas todo o entorno: vitrines, sensações, mobiliários, cheiros, prazeres, atendimentos, pós-vendas e um etc tão longo quanto o currículo do consultor de marketing disponível. Resumindo e falando de modo simples, a experiência de venda é o alto astral na loja que faz a freguesia voltar à sua loja ao invés de comprar no concorrente.
E não foi isso que a Cultura fez? Lojas cada vez mais bacanas em pontos estratégicos de cidades espalhadas no país, pufes onde os clientes se jogavam para ler qualquer livro ao alcance das mãos, cafés com wifi para reuniões rápidas ou para passatempos demorados, compra online funcional e com entrega em dia. Fora o nome, Livraria Cultura – aliás, o branding!
A Cultura fez tudo direitinho, seguiu à risca o manual. O manual dos tempos atuais, onde um fundo de investimentos aporta capital, toma as rédeas do negócio – com ou sem um preposto representando os antigos donos – e decide como o negócio vai ser tocado e como os tempos virão dourados! Tudo é lindo em planos de negócios elaborados por quem nunca tocou negócio algum. Analistas de fundos de investimentos são especialistas em teoria e planilhas. Na prática, a teoria é outra?
Não. Na prática, a teoria é a teoria mesmo, temperada pelo bom senso de quem vive com a barriga no balcão fechando a féria diariamente, olhando no olho de quem comprou e se perguntando por quê um cliente não comprou. Varejo é isso: barriga no balcão, olho do dono engordando o boi, conta de padaria. Varejo é padaria. Árabes e portugueses o sabem.
A crise da Cultura é mais do que a eterna fragilidade do mercado editorial brasileiro, sempre e em tudo dependente do governo. É a expressão do modo empresarial OPM: ‘other people’s money’ – dinheiro dos outros. Other people investe no fundo, o fundo investe no negócio, o negócio dá o retorno que o fundo espera, o fundo sai do negócio. E sai do negócio através de uma operação muito bem nomeada: desinvestimento. Que língua a nossa… A empresa não fez o caixa necessário para continuar remunerando o money dos other people. Daí o other people desinvestiu.
E o que seria da Livraria Cultura se hoje ela fosse ainda apenas a loja do Conjunto Nacional? Difícil ter respondido esta pergunta 10 ou 15 anos atrás, quando muito provavelmente ela nem tenha chegado a ser feita.
A crise da Cultura é isso: um passo maior que a perna, o canto da sereia financeira. É triste porque é numa empresa cultuada e que sempre fora uma estrela brilhando no parco firmamento livreiro do Brasil. Mas é isso.