Cem dias de não-sei-o-quê

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Um certo tema me ronda a mente há muitos meses, precisamente desde outubro de 2018: comparar o que se dizia sobre o início do governo Lula com o que se diz sobre o início do governo Bolsonaro. Tenho lido o acervo da Folha de S. Paulo, a única base que assino e que estava já em operação desde 2003, e buscado online outros arquivos que sejam abertos ao público em geral. Parece mais fácil do que é, embora não seja difícil. Toma tempo, exige certa acuidade visual para ler pdf de folha de jornal impresso e demanda verificação de fontes quando o resultado da busca devolve arquivos abertos sem identificação clara de fonte. A imprensa tem o hábito de utilizar os primeiros cem dias de um novo governo para avaliar e tentar projetar o que ele pode vir a ser – em geral, a avaliação é crítica e a projeção revela-se errada. E o que são cem dias?

Em cem dias, Amir Klink cruzou o Oceano Atlântico sozinho em um barco a remo, saindo da Namíbia e chegando na Bahia. Era o ano de 1984 e neste meio tempo Joaquim Cruz ganhou um ouro olímpico, Tancredo e Sarney foram escolhidos como chapa presidencial para as eleições do ano seguinte. E falando em presidentes, o atual servia no 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista em Deodoro, bairro do Rio de Janeiro.

E por falar no atual presidente, nesta semana ele competa cem dias no cargo. O Brasil importou dos EUA esse prazo de pouco mais de três meses, uma espécie de prazo de carência misturado com vamos ver no que vai dar; para a imprensa é quando chega a hora de descer o porrete, mas para a população geral não vai além do deixa como está para ver como é que fica.

Nos EUA, surgiu em 1933, com Franklin Roosevelt prestando contas num discurso feito pelo rádio. Eram tempos de recessão e havia pressa para que o presidente fizesse alguma coisa. De lá para cá, a moda pegou e se espalhou pelo mundo.

No Brasil, José Sarney foi o primeiro presidente a ter uma avaliação de cem dias. Curiosamente, não por um jornal brasileiro, mas pelo Financial Times, de Londres. Matéria reproduzida na Folha de S. Paulo, afirmava que o governo “falhou em satisfazer as expectativas […] existe um crescente clima de incerteza no país […] no lugar das talvez exageradas expectativas de mudanças radicais e de uma restauração dos padrões de vida, existe agora uma conscientização da natureza temporária e transitória do governo […] o Congresso está mais envolvido com lutas partidárias do que com suas tarefa de legislar […] o Ministério permanece dividido entre os ministros associados com o regime anterior e os que tentam dar novos rumos ao país”. Na mesma Folha, uma nota da coluna Painel dizia que “decorridos os cem primeiros dias da ‘Nova República’ verifica-se que o PDS ainda não se acostumou a fazer oposição, nem o PMDB aprendeu a ser governo’. Típica nota jocosa e nada analítica, ainda mais ao se considerar que, sentado na cadeira presidencial, estava um novato peemedebista que era um veteraníssimo pedessista/arenista.

Os primeiros cem dias da presidência de Fernando Collor de Melo, na avaliação do então senador Mario Covas, que havia sido derrotado na campanha presidencial, “revelaram a ‘índole autoritária’ que Collor deixava transparecer na campanha”. Em coluna na Folha de S. Paulo, Gilberto Dimenstein escrevia que o presidente já considerava uma reforma ministerial, “‘num governo descoordenado, ocupado, em cargos chaves, por pessoas inexperientes, abaixo, como se está vendo, do nível de exigência da crise.” É digno de nota ler, no jornal da época, que o governo do ‘caçador de marajás’ combatia mordomias e havia colocado a venda famosas mansões do Lago Sul de Brasília. Já o jornalista Marcelo Coelho anotava que “a vontade presidencial se exiba a cada momento, mas não é capaz de fazer milagres; já conhece os seus recuos, já registra erros, derrotas: a ‘era Collor’ enfim se transforma, brasileiramente, em governo. […] derrotado na Copa, o Brasil mergulha num cotidiano por assim dizer descolorido […] e o governo Collor vê um longo período pela frente; tão longo que a próxima Copa será jogada ainda em seu mandato.” Ele errou na profecia, mas quem, no começo de 1990, conhecia os jardins da Casa da Dinda, no Lago Norte, e ainda diria que dois anos mais tarde o Brasil experimentaria seu primeiro impeachment presidencial?

De Itamar, não encontrei nada que avaliasse seus primeiros cem dias, talvez porque ele tenha assumido interinamente enquanto o processo de impeachment corria seu curso, e depois de mais ou menos três meses acabou por assumir a presidência permanentmente. Ele teria tido dois cem primeiros dias…

Já FHC foi brindado, ainda pela Folha de S. Paulo, com uma análise de 90 dias. Sabe como é, a Folha sempre quer fazer algo diferente… Pois ao cabo de 90 dias, o jornal dizia que “FHC busca uma marca que possa distinguir seu governo e apagar a imagem de hesitação e descoordenação. O presidente mal consegue vender dados positivos de suas gestão, como o controle dos gastos e a inflação baixa. A dificuldade de comunicação se traduz na relação tumultuada com um Congresso teoricamente aliado e na incapacidade de convencer os chamados agentes econômicos de que o Brasil não é o México”, que havia passado por uma grave crise financeira no final de 1994 por conta da falta de reservas internacionais e outras coisas complicadas da macroeconomia globalizada. À época Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns comentava que o governo FHC começava mal; o presidente era um “cientista” e seu governo era uma “pesquisa”.

Chegamos então aos primeiros cem dias do governo de Lula, em 2004. Uma colunista da  mesma Folha, Eliane Cantanhede, abria seu artigo dizendo que “nem tudo são flores na lua de mel do governo Lula, quando ministros batem cabeça, a área social parece imobilizada e há forte tiroteio contra o Fome Zero.” Destaca ainda o envolvimento de um ministro, indicado pelo partido do vice-presidente, com corrupção (Anderson Adauto, PL/MG). Reportagem de Gustavo Pat destrinchava o “calhamaço de 95 páginas elaborado pelo ministro Antonio Palocci (Fazenda)” que tornava “oficial algo que ganhava forma desde a campanha eleitoral – o pensamento econômico tradicional do PT foi abandonado pelo governo”, que transformou a “ruptura com o modelo econômico” em “ruptura com o passado de ausência de disciplina fiscal”. Outra reportagem, assinada pela dupla Martha Salomon e Gabriela Athias, informava que “depois de reconhecer ‘tropeços’ na área social nos primeiros cem dias de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prepara uma guinada. A idéia é ter um único programa de transferência de renda.” Josias de Souza, por sua vez, mostrava um Lula inebriado com a vitória e ainda sem ter caído na real do exercício do cargo. E Lula chegava ao seu centésimo dia com a maior avaliação positiva desde a década de 1990, segundo DataFolha.

Sobre o governo de Lula é mais fácil de encontrar notícias. O site da BBC Brasil, por exemplo abre chamada dizendo que os “cem dias de Lula surpreendem analistas econômicos”, porque o então presidente “seguiu a ortodoxia que analistas financeiros defendiam, mas não acreditavam que ele a adotasse”. A economia falou mais alto, e hoje já não é uma ortodoxia comparar Lula 1 com FHC 1 e 2 em termos econômicos. A coisa deu uma guinada em Lula 2 e descambou ladeira abaixo em Dilma 1, a ponto de justificar o impeachment em Dilma 2.

Mas nos cem dias de Dilma, em 2011, as manchetes da Folha de S. Paulo mostravam: “Dilma está se saindo melhor que a encomenda”, “Na política externa, Dilma coloca EUA e China como prioridades”, “Presidente marca território frente a aliados”, “Real atinge patamar recorde de valorização frente ao dólar”, “Fidelidade de deputados da base foi de 92,7%” e “Oposição ainda busca discurso”. Só alegria, como se vê. Ou melhor: nada se via e a alegria era só ingenuidade.

Como é fácil perceber, os cem dias iniciais de governo não mostram tudo o que um governo pode ser. Mas indicam muita coisa. Sarney tinha um governo dividido, e divido esteve até que a Assembléia Constituinte definisse se seu mandato seria de quatro, cinco ou seis anos; quando decidiu por cinco, faltava apenas um para ele passar a faixa e a inflação chegou a 90% ao mês nos seus últimos 30 dias de Planalto. Collor chegou chegando e saiu saindo, passou não só os cem primeiros dias batendo em todo mundo como atirou a esmo até o último momento; foi impedido, cassado e anos depois absolvido. FHC, acostumado a falar para os universitários, enrolou-se na comunicação com o povo e nunca, nem nos cem dias, nem nos vinte anos seguintes, conseguiu cantar a vitória de ter implementado e domado a inflação. Itamar tentou isso para si, mas ninguém nunca levou Itamar a sério. E Lula demorou para encontrar o caminho do banheiro; depois enrolou-se no mensalão e no petrolão; está preso, o que diz muito não só sobre seu governo, mas sobre o Brasil como um todo. De Dilma, fica a lembrança dos mais de 90% de fidelidade da base aliada – aliada ao butim que a Lava Jato viria a mostrar depois.

Por fim, cem dias também é um período famoso na história, no fim das Guerras Napoleônicas, em 1815. Foi o último governo de Napoleão na França, quando ele voltou do exílio e tentou mais uma vez conquistar a Europa. Voltou em março e em junho caiu em Waterloo.

O atual presidente vai completar cem dias de governo em breve. Até o momento, não consegui ler nenhuma notícia favorável ao seu governo – excluídos os canais de propaganda do Youtube, que não veiculam notícias, só propagandas. Sob o meu ponto de vista, o governo Bolsonaro vai mal, muito mal: despreza especialistas para agir no voluntarismo, se esquece da economia e foca nos costumes. Faz sentido, afinal enquanto ainda era candidato Bolsonaro afirmou na TV que não entendia de economia e que iria limpar o Brasil da praga da esquerda. Como disse em discurso nos EUA, primeiro tem que desconstruir o que os esquerdistas fizeram para depois construir o que considera certo. E isso é feito com convicção, com método, com energia e com disposição. Ao completar cem dias, não se poderá criticar Bolsonaro por inação, pelo contrário, acho que ele está fazendo tudo o que acredita estar correto.

O diabo é que eu acho que está tudo errado, e os seus cem dias estão com forte cheiro belga de Waterloo.

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